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quarta-feira, 27 de maio de 2020

As crônicas de Iniamar - capítulo 3


Logo depois de ouvir o aviso de Haryn, Ethan correu até sua casa, mas seus pais não estavam lá. Às vezes as pessoas ainda ficavam conversando no pavilhão, mesmo depois das histórias, e pensou que talvez pudesse encontrá-los ainda na praça. Não sabia qual era o perigo de que Haryn o havia alertado, mas se era necessário sair da aldeia, devia ser algo grave. Pegou algumas roupas e comida apressadamente e saiu para tentar achar os pais.
A tarefa de tentar tirar algumas pessoas da aldeia, de um perigo desconhecido, incomodava-o. Como poderia escolher? E o que diria a elas? E talvez tudo não passasse de um exagero de Haryn. Enquanto pensava nessas coisas, encontrou Bunn.
– Ethan? Ainda por aqui?
Ethan sabia que podia confiar no amigo.
– Preciso falar com você. Você viu meus pais?
– Há um tempo, perto do relógio, mas não parece ter mais ninguém por lá, está tudo quieto.
– A aldeia está em perigo, não sei exatamente o que é, mas Haryn disse para eu sair daqui e levar comigo algumas pessoas, mas além da minha família e de você, não consigo pensar em ninguém.
– Perigo? Que perigo?
– Eu não sei.
– E as meninas? – Perguntou Bunn preocupado. – Temos que levá-las.
– Haryn está com as meninas, não se preocupe.
– Você acha que tenho tempo para buscar algumas coisas?
– Creio que sim, mas seja rápido. Vou procurar meus pais e te espero perto do relógio.
– Tudo bem – disse Bunn, já correndo para a hospedaria onde trabalhava e tinha um pequeno quarto. Ele sabia que Ethan, e principalmente Haryn, não brincariam com um assunto desses e por isso não perdeu muito tempo com perguntas, teria tempo para isso depois. Se havia algum perigo ali, o melhor era ir para outro lugar, aprendera isso desde pequeno.
Entrou pela porta dos fundos e correu até seu quarto, pegando algumas roupas. Parou para olhar pela janela, que dava para a praça do relógio e não havia ninguém. O silêncio da aldeia era anormal. Correu de volta às escadas e foi até à cozinha para pegar comida. Não havia ninguém no salão, nem na cozinha, e isso o deixou mais nervoso. Sempre havia alguém ali.
Bunn saiu apressado para encontrar Ethan, mas ele ainda não estava no relógio. Resolveu procurar no pavilhão, pelo menos lá ele poderia perguntar para algum mercador se havia visto o amigo, os mercadores sempre ficavam acordados até tarde. Quando chegou ao pavilhão, também não encontrou ninguém. Tudo estava muito estranho. Contornou a primeira barraca e começou a andar no grande corredor. Tudo estava silencioso. Talvez Ethan tivesse voltado a sua casa para ver se os pais estavam lá. Parou em meio às barracas e pensou se deveria chamar por um dos mercadores. Preferiu não fazê-lo e começou a refazer seu caminho de volta ao relógio. Quando contornava as casas que separava o pavilhão do relógio, ouviu Ethan chamando o seu nome de maneira urgente. Sem saber exatamente por que, decidiu não gritar de volta, mas se apressar. O relógio já estava visível, mas Ethan estava de costas para ele e ainda não o vira. Mas ele não estava sozinho. Três homens encapuzados se aproximavam, vindos do norte da aldeia e Ethan não estava vendo. Às vezes alguns mercadores gostavam de procurar brigas com os moradores e esse parecia ser o caso. Pensou em avisar o amigo, mas alguma coisa ainda o impedia de gritar. Quando ia começar a correr para ajudar Ethan, os homens se aproximaram dele a uma velocidade impressionante e antes que Bunn pudesse ver ou fazer qualquer coisa, alguém o puxou para trás de uma casa.
– Você não pode mais ajudá-lo – disse Josh. – Precisamos sair daqui logo, vamos!
Bunn não entendia, mas seguiu o ancião.
– O que está acontecendo?
– São homens do rei, estão aqui para matar todos os moradores da aldeia.
– Mas por quê?
– Isso eu não posso dizer. Vamos.
– E Ethan?
– Ele está morto.
Bunn não sabia o que dizer. De alguma maneira já sabia disso, mas ainda estava chocado.
– Vamos, Bunn, temos que sair daqui.
Eles passaram pelas sombras das casas e seguiram para o norte, pois Josh disse que a parte sul da aldeia estava sendo vigiada. Andaram durante toda a noite em direção ao oeste e só quando até mesmo as fazendas que rodeavam a aldeia não estavam mais visíveis, viraram rumo ao sul.
– Precisa descansar, Bunn?
– Não, senhor, podemos continuar.
Bunn estava muito silencioso e Josh achou estranho alguém tão jovem não enchê-lo de perguntas. Seria o que Demi faria, com certeza.
– Sinto muito por seu amigo.
Bunn acenou com a cabeça.
– Você está bem?
– Sim, senhor.
Josh resolveu deixá-lo em paz, mas depois de um tempo, Bunn falou:
– Por que alguém iria querer matar uma aldeia inteira? O que fizemos para ofender o rei?
– Nada. O problema não é nada que fizemos, mas sim o que ouvimos.
– E o que seria, senhor?
Josh olhou-o. Parecia avaliar se Bunn era de confiança.
– A versão contada do ritual dos dragões na noite anterior. É a verdadeira.
– Como o senhor sabe disso, senhor? – Perguntou Bunn com olhos arregalados.
– Essa é uma longa história, que não posso lhe contar – respondeu.
– E o que dizia a versão? Não ouvi, estava com Aisni, a gente estava – Bunn pareceu ficar envergonhado – estava conversando.
Depois de um sorriso, Josh falou:
– Não precisa se envergonhar, Bunn.
Logo em seguida Josh repetiu apressadamente e em voz baixa a história contada pelo contador de histórias.
– E então uma aldeia inteira passou a saber que ainda existe um descendente da linhagem antiga.
– Mas, como ele sabia, senhor? Quero dizer, o cantor? E por que contou? Ele devia saber do perigo se sabia a verdade e também... ninguém passou a saber nada porque para todo mundo era só uma versão, não era?
Josh ficou impressionado com o raciocínio do garoto, ele tinha razão sobre algumas coisas.
– Como ele sabia, eu não sei. Tentei encontrá-lo para perguntar, mas ele havia desaparecido. Quanto ao motivo para ter contado, talvez ele quisesse exatamente isso, colocar a aldeia em perigo. Algumas pessoas se divertem com o sofrimento alheio. E realmente, as pessoas poderiam ter entendido aquilo somente como mais uma versão, mas o rei não se arriscaria a ter uma aldeia inteira acreditando em um herdeiro legítimo ao trono.
– Mas como esses homens chegaram à aldeia tão rápido? E como eles mataram todas as pessoas assim, em uma noite?
– Meu palpite é que eles já estavam aqui. Acredito que sempre há homens do rei nas quinzentinas de qualquer aldeia, justamente para ficar de olho em histórias suspeitas e, se for preciso, fazer o trabalho sujo. O rei não se importa em perder algumas aldeias, ele não precisa do povo. E esses homens não são homens comuns. São a guarda especial do rei.
– Mas então o rei sabe a verdade sobre o ritual dos dragões?
– Sim, ele sabe – respondeu Josh, e ele parecia triste com isso.
– Engraçado isso. Eu nunca nem tinha pensando no rei, era como se ele nem existisse, fosse só uma lembrança. E agora ele não só existe como matou todas as pessoas que eu conhecia.
Josh reconheceu tristeza e raiva nessa afirmação, e falou:
– O melhor conselho que posso te dar é para se afastar desse assunto. É algo muito acima de suas capacidades, mesmo que você se torne um grande guerreiro. Esse homem que se senta no trono, por tantos anos em silêncio, não é somente o que aparenta ser.
– Não se preocupe, senhor, não pretendo me meter com o rei. Só quero encontrar Aisni, na verdade.
– Acho que posso te ajudar com isso. Ela está com Haryn e sei que ele pretende seguir para as montanhas do leste, mas não sei que rota ele pretende seguir. Não ficarei com você por muito mais tempo, tenho coisas a resolver, mas caminharemos juntos por pelo menos o resto do dia.
Andaram por mais algumas horas antes de pararem para comer alguma coisa e descansar. Quando voltaram a andar, rumaram para o leste e, ao longe, podia-se ver uma floresta que se estendia pelo horizonte. Chegaram lá ao final do dia e pararam novamente para descansar e comer. Já alimentados, Josh disse:
– A partir daqui você vai ter que continuar sozinho. Meu caminho agora me leva ao Norte distante. Mas se aceita um conselho, eu entraria na floresta, se fosse você. Há pessoas que podem te ajudar e uma grande chance de encontrar Aisni aí. Sei que Haryn não pretendia passar pela floresta, mas suspeito que ele possa ter mudado de ideia.
– Obrigado, senhor, farei isso.
– Você tem comida?
– Sim, senhor.
– Muito bom. Você deve encontrar algumas frutas na floresta também. – Depois de alguns minutos em silêncio, Josh completou: – Se você encontrar Demi, diga que tudo ficará bem e que vamos nos ver logo.
– Sim, senhor, eu direi.
Josh sorriu. – Obrigado, rapaz. Tome cuidado e que os ventos lhe favoreçam.
– O senhor também, tenha uma boa viagem.
– Obrigado!
Bunn ficou olhando Josh se afastar por um tempo e depois se embrenhou pela mata. Andou por mais uma hora, até não conseguir mais ver a borda da floresta, e então encontrou um lugar para passar a noite. Seu sono foi desconfortável e curto e, um pouco antes do alvorecer, ele partiu novamente, indo cada vez mais para dentro. Enquanto seguia entre as árvores, Bunn ia pensando em como conseguiria sair de lá quando precisasse e também pensava se poderia arriscar chamar o nome de Aisni, mas achou melhor não.
O calor era intenso e o sol já devia estar alto no céu, mas Bunn não conseguia vê-lo, pois as árvores eram altas e cheias de folhas. Ele gostava de andar entre as árvores, estava acostumado a caçar na pequena floresta perto da aldeia, mas essa era diferente. Além de ser muito maior, tinha algo de diferente no ar, algo que se intensificava conforme ele continuava andando. Quando imaginou que fosse mais de meio-dia, sentou-se para comer alguma coisa e descansar um pouco os pés da caminhada.
O cansaço poderia explicar o que aconteceu a seguir, mas isso não diminuiu em nada a irritação de Bunn ao perceber que tinha adormecido. Acordou assustado e viu que já era noite. Levantou rapidamente e começou a andar novamente, mas a escuridão tornava difícil desviar de raízes e até mesmo alguns animais que apareciam ocasionalmente em seu caminho. Bunn já estava quase desistindo de tentar andar durante a noite quando ouviu pessoas conversando a alguma distância. Por um momento ficou com medo de que fossem os homens da aldeia, mas a conversa parecia alegre e descontraída, o que não combinava com eles. Aproximou-se cautelosamente das vozes e se escondeu atrás de uma árvore para conseguir ouvir. Havia quatro pessoas em torno de uma fogueira e duas delas estavam conversando despreocupadamente, enquanto os outros dois dormiam, apesar da conversa.
– Eu ainda acho que Niara não deveria trazê-los.
– Eu acho que talvez seja bom. Estamos a tanto tempo isolados aqui que ter alguns forasteiros poderia ser interessante.
– Mas quais as chances de eles serem divertidos? Não me parece provável.
– Mas pode ser, oras! E as mulheres mortais são tão lindas. A mortalidade lhes confere uma urgência em viver e em aproveitar a vida, e uma beleza passageira e intensa, diferente das do nosso povo.
Bunn atentou para a palavra ‘mortais’ e ficou mais interessado ainda naquelas pessoas.
– E o que isso quer dizer?
– Quer dizer que são mais alegres e mais divertidas.
– Mais alegres ou mais fáceis de serem enganadas por você? 
– Fácil é a última coisa que as mulheres são, seja da raça que for.
Nesse momento ambos caíram na gargalhada. Bunn, ainda escondido, estava curioso e fascinado. O que seriam eles? E existiria mesmo uma raça imortal que não fossem os dragões, tão parecida com os humanos? Ficou perdido em pensamentos e, sem ao menos perceber o que estava fazendo, se levantou e se dirigiu aos estranhos.
Eles se levantaram assustados e deram gritos que acordaram seus companheiros adormecidos. Nesse momento Bunn acordou do encantamento em que estava e percebeu o que havia feito, sem entender como fora parar ali. Fez uma reverência, pois não sabia mais o que fazer, e então ficou esperando que eles falassem alguma coisa.
Depois do susto, os estranhos pareciam ter se acalmado e os que estavam dormindo ainda estavam confusos. Um dos que estavam conversando disse:
– Quem é você e como chegou até aqui?
– Meu nome é Bunn e cheguei até aqui andando, senhor.
Eles riram quando ouviram seu amigo ser chamado de senhor.
– Não precisa me chamar de senhor, Bunn, meu nome é Knut e esses são meus amigos Nowak, Wilfred e Radomil.
Todos acenaram com a cabeça.
– Quando perguntei como chegou até aqui não me referi ao seu meio de transporte. Quero saber como conseguiu passar por nossas barreiras.
– Não encontrei nenhuma, senhor Knut.
– Knut – insistiu.
– Knut – repetiu Bunn.
– Não encontrou?
Bunn negou com a cabeça. Não conseguia encontrar palavras para descrever o que estava vendo. Já ouvira lendas sobre seres mágicos e imortais, como os rovos, mas nunca ouvira sobre essa raça tão incrivelmente parecida com os homens.
Eles sussurravam entre si e pareciam preocupados. Depois de algum tempo, Knut voltou a falar:
– Você está perdido?
– Posso dizer que sim, se... Knut.
– E para onde vai?
– Ainda não sei, na verdade.
– Se importaria de nos acompanhar até nossas casas para falar com nosso líder? Talvez ele possa ajudar e tenho certeza de que quererá lhe fazer algumas perguntas.
– Tudo bem. – Bunn tinha a impressão de que sua vontade não era relevante e que eles o levariam de qualquer maneira e rezou aos deuses dragões para que não fosse um povo mal.
– Você está muito cansado ou pode caminhar? – Era sempre Knut quem falava.
– Posso caminhar.
– Está com fome?
Bunn poderia comer algo, mas preferiu negar com a cabeça. Estava intimidado pela estatura e beleza daqueles seres, todos de cabelos castanhos e com vozes suaves.
– Então nos dê alguns segundos e já partimos.
Bunn esperou enquanto eles apagavam a fogueira e guardavam as poucas coisas que carregavam. Eles estavam sempre sussurrando entre si e ele não conseguia ouvir nenhuma palavra.
– Podemos ir – disse Knut apontando o caminho.
Bunn seguiu dois deles que já estavam em marcha, enquanto Knut e o outro vinham logo atrás. Tudo o que tinha acontecido nos últimos dois dias parecia um sonho, mas principalmente isso. Ele estava apavorado e maravilhado, achando que provavelmente tinha caído em uma das lendas que ouvira, em que sempre havia seres mágicos e aventuras. Só lamentava que não fosse uma lenda que conhecesse e, sendo assim, não tinha ideia do que o aguardava adiante.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

As crônicas de Iniamar - capítulo 2



Demi não respondeu, porque o que Haryn tinha dito não fazia o menor sentido. Como poderiam estar todos mortos? Era apenas um incêndio que havia acabado de começar e claro que poderiam avisar as pessoas.
– O que você está falando? O fogo começou agora!
– O fogo é só uma distração, já estão todos mortos. Devíamos ter saído de Buruma quando vocês voltaram do pavilhão, fui um idiota. Vamos!
É claro que ele era um idiota, essa era a única coisa que Demi entendia e concordava de tudo o que ele estava falando, mas ela não entendia o que ouvia, ou não queria acreditar.
– Do que você está falando? Por que temos que fugir? – E então se lembrou de Josh e seu torpor momentâneo se transformou em desespero. – Josh! – Gritou, enquanto tentava correr de volta para a aldeia. Haryn a segurou enquanto ela esperneava e tentava morde-lo. – Me solte, seu idiota, me solte! Josh!
– Josh não está lá, ele está bem, não está na aldeia.
Demi não prestava atenção e continuava a gritar. Haryn teve que sacudi-la e também gritar.
– Demi, pare! Josh não está lá, ele está bem! E você precisa falar mais baixo e continuar andando.
Demi olhou-o como se o visse pela primeira vez. Parou de se debater e olhou para o fogo.
– Ethan...
– Eu avisei-o para tentar tirar o maior número de pessoas que conseguisse da aldeia, não sei onde está agora, mas acho que não está lá. Mas as pessoas que estavam na aldeia estão todas mortas. Eles não deixam sobreviventes.
– Quem são eles?
– Precisamos ir andando, quando estivermos longe daqui eu explico, vamos.
Demi ainda estava em estado de choque e foi só quando andaram alguns metros que viu Aisni sentada no chão, em prantos. Foi então que se deu conta de que provavelmente a família da amiga estava morta. E se ela não tivesse passado a noite em sua casa também estaria. Demi não sabia o que dizer, apenas se ajoelhou e abraçou a amiga.
Haryn se virou mais uma vez.
– Precisamos ir, meninas. Eu sinto muito, Aisni, não podia fazer nada, de outro modo eu teria salvado sua família.
Aisni olhou-o, mas seu olhar estava vazio de significado e cheio de lágrimas. Podia ser incredulidade ou compreensão, Haryn não saberia dizer. Mas o olhar de Demi era de desconfiança e raiva. Tinha certeza de que Haryn estava mentindo, se não sobre tudo, pelo menos sobre a família de Aisni. Lembrava-se de que ele queria deixá-la para trás, só não imaginava que seria para morrer. Haryn a olhava.
– Vamos, Demi. Precisamos ir agora ou morreremos também e Josh jamais me perdoaria. Vamos.
Demetria se levantou e amparou Aisni, depois disso começaram a andar em direção ao sul.
– Por que Josh partiu e me deixou para trás? – Perguntou Demi.
– Porque ele sabia que eu a protegeria. – E antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, ele completou. – Ele confia em mim.
Demi não respondeu. Ainda não se conformava com o fato de Josh gostar tanto de Haryn.
Artur convidou Aisni para montá-lo por um tempo, já que a menina parecia não conseguir se mover. Eles andaram por muito tempo e quando Haryn permitiu que parassem para comer alguma coisa, perto de um riacho, o céu já começava a clarear.
– O dia hoje vai ser quente. – Disse Haryn.
– E como é que você pode saber isso? – Demi não estava disposta a começar a ser simpática com ele só porque ele agora usava seu nome ao invés de chama-la de pirralha.
– Experiência.
– Experiência? Experiência em quê? A única coisa que você sabe fazer é beber e me atormentar.
Haryn não respondeu. Artie, Bernie e Aisni se afastaram para pegar água no riacho.
– Para onde você está levando a gente? O que aconteceu na aldeia? Quem matou aquelas pessoas e por quê? Foram os mercadores? O que tudo isso tem a ver com a versão do ritual?
– Não posso falar de nada disso ainda, Demi.
– Demi? Desde quando eu sou Demi para você? Não sou uma pirralha?
– Sim! É exatamente o que você é. – Disse Haryn irritado. – Não sei por que pensei que você poderia ser madura o suficiente para entender uma situação de extremo perigo. Se o seu nome a ofende tanto assim, talvez você realmente não o mereça. E se agrada a senhorita – disse se curvando – não o usarei mais. Na verdade, vamos combinar o seguinte: eu não me dirijo mais a você.
– Ótimo! Pelo menos uma boa notícia! – Disse Demi tentando parecer feliz, mas na verdade só estava se sentindo pior. Sentia falta de Josh e de Ethan e nem ao menos tinha certeza se eles ainda estavam vivos.
Haryn estava no riacho, lavando as mãos e o rosto, como se nada tivesse acontecido e já falava com Artur.
– Artie, precisamos encontrar um lugar para passarmos alguns dias, mas não tão perto da aldeia. Depois de mais um dia de caminhada, precisarei de sua ajuda.
– Sem problemas.
Haryn assentiu.
– E, Bernie, vou precisar de sua ajuda desde já. Quero que fique de olhos e focinho bem abertos, qualquer mudança no ar, me avise.
– Pode deixar.
– Não vamos descansar ainda. Vamos comer alguma coisa e já partimos. Encham os cantis, pois embora pretenda seguir o riacho, não sei se isso será possível por muito tempo. Essa floresta fica estranha mais a leste e não quero entrar mais do que o necessário nela.
– Não vou continuar, quero descansar agora – disse Demi.
Haryn fingiu não ter ouvido e Bernie olhou-a com desaprovação e fez um sinal negativo com a cabeça, quase imperceptível. Demi abaixou os olhos e quis chorar, mas se segurou. Odiava ser repreendida pelos amigos. Mas imaginava que teria que ceder. Por mais que quisesse irritar Haryn, a situação não parecia aceitar brincadeiras e teimosias.
Demi ainda não acreditava, na verdade, que todos em Buruma estivessem mortos. Haryn havia falado, sim, mas ele poderia estar enganado. Mas Bernie e Artie pareciam muito preocupados e Demi nunca havia visto os amigos assim, então acreditava que alguma coisa grave devia estar mesmo acontecendo. Tinha decidido não falar mais com Haryn; se ele preferia ignorá-la, melhor para ela.
Andaram a manhã toda entre árvores ralas, contornando a borda da floresta, e depois de algumas horas o riacho se virou para o sul e não podia mais ser visto; mas durante algumas horas ainda podiam ouvir o som da água borbulhando à direita. O sol estava quente e, embora Artie e Bernie estivessem carregando a bagagem das meninas para que elas não se cansassem tanto, elas estavam exaustas. Demi caiu duas vezes, não conseguindo fazer suas pernas obedecerem a sua vontade, afinal não estava acostumada a andar por tanto tempo assim, mas estava decidida a não dizer uma palavra. Haryn ignorava completamente o sofrimento da menina e só quando Aisni caiu de joelhos ele propôs uma parada para descansarem à sombra de uma faia.
Quando se sentaram, Demi pegou alguns pedaços de carne seca e dividiu com a amiga, que não quis comer. A menina não falava nada desde quando partiram da aldeia. Ela encostou-se na árvore e ficou olhando para a floresta. Artie, Bernie e Haryn tinham trazido sua própria comida, por isso Demi não se importou em oferecer. Seus pés estavam vermelhos e empoeirados. Tinha pegado o sapato mais confortável que possuía, mas ainda assim ele não era adequado para uma caminhada tão longa.
Bernie comeu apressadamente e se afastou um pouco, farejando o ar. Demi estava tão cansada que poderia dormir e, esquecendo sua briga com Haryn, pegou-se olhando para ele e pensando o que será que ele fazia quando estava longe da aldeia. Ele parecia diferente agora, não sabia como. Seu cabelo escuro continuava embaraçado e sujo e suas roupas de couro negro ainda eram as mesmas, mas havia algo de diferente, estava mais sério e pensativo. Seus olhos verde-acinzentados fitavam o horizonte à frente e parecia não notar o olhar da menina. Demi ia lhe fazer perguntas, quando se lembrou de que ele a estava ignorando e se sentiu irritada novamente. Nesse momento Bernie voltou e chamou Haryn, que se levantou apressadamente e trocou palavras urgentes com o urso.
– Precisamos ir. Agora – ele se dirigia a Aisni. – Vamos, criança, prometo que esta noite você poderá dormir e descansar, mas não agora.
Aisni se levantou sem dizer nenhuma palavra e seguiu-o. Demetria, se sentindo completamente ignorada, também o seguiu, mas estava cada vez mais difícil controlar a raiva e as lágrimas. Não gostava de Haryn, mas ser ignorada era extremamente irritante.
– Vamos ter que entrar na floresta. Não era a rota que planejava, mas é o mais seguro agora. Não viajei muito por estas terras, mas há histórias... não sei se prefiro que sejam verdadeiras ou não. Mas ao menos teremos mais sombra.
Quando começaram a andar entre as árvores, Demi diminuiu o passo para ficar para trás e deixou as lágrimas correrem, esperando que ninguém olhasse para trás. Mas Haryn não se importaria em virar-se e Bernie e Artie seguiam lado a lado, vigiando por entre as árvores que se adensavam. Aisni estava afogada em sua própria tristeza e Demi se sentiu segura em deixar toda a raiva e a tristeza sair. Não sabia por que chorava e não queria saber, só chorava. Depois de um tempo as lágrimas acabaram e tudo o que restou foi o calor e o cansaço.
Na parte da floresta em que estavam agora, as árvores formavam um teto verde. Não andavam sob o sol, mas o lugar era abafado e quente. Demi não tinha ideia de que horas eram, mas imaginava que o dia estava avançado, pois não via mais o sol sobre as árvores. Estava muito cansada e começou a tropeçar em raízes. Trançou seu emaranhado de cabelos para ver se diminuía o calor, mas sua cabeça doía e começou a ouvir vozes que a chamavam, mas ninguém falava com ela. Fechou os olhos por um momento, para tentar esquecer o cansaço, e não conseguiu mais abri-los.

Bernie segurou-a antes que caísse no chão.
– Demi. Demi! – Ela não acordou.
Todos pararam e voltaram, mas Haryn se sentou em uma raiz e tomou um gole de água, parecendo não se importar. Provavelmente uma cena para chamar atenção.
– Haryn, ela não está acordando – Disse Bernie.
– Vai acordar logo.
– Pelos céus, Haryn! Você também vai teimar como uma criança? Josh o designou para protegê-la e é assim que você se comporta? – Bernardo parecia ter perdido as estribeiras com o comportamento do amigo. – Esqueceu a gravidade da situação?
Haryn não respondeu, mas depois de alguns segundos levantou-se e foi até Demi. Checou seu pulso e sua respiração. Aisni observava tudo, mas não participava. Artie e Bernie pareciam muito preocupados.
– Ela desmaiou, provavelmente de cansaço e calor – disse Haryn como se informasse que vai chover.
– Então temos que parar.
– Não podemos. Não aqui.
– E o que você sugere?
Haryn olhou em volta.
– Precisamos andar pelo menos mais algumas horas, duas ou três, e depois podemos descansar.
– Espere um minuto. – Era a voz de Aisni. Ela veio até Demi e passou um pouco de água em seus pulsos e em sua testa.
– Eu a carrego – disse Bernie. Haryn já estava andando.
Continuaram andando por mais duas horas e todos estavam em silêncio. Artie estava prestando atenção nas redondezas, quase não havia mais claridade e era difícil enxergar as armadilhas da floresta.
Haryn veio até Bernie.
– Precisa de ajuda? Quer que eu a carregue?
– Não precisa.
– Me desculpe por me comportar daquela maneira, mas essa menina me tira do sério.
– Bem, você procurou, por vinte e um anos. O que esperava agora? – Bernie estava mais calmo agora.
– Foi mesmo – concordou Haryn, sorrindo. Depois de algum tempo caminhando em silêncio, ele disse: – Ela vai ficar bem. E vamos ter mais cuidado daqui para frente para isso não acontecer mais. Estamos cada vez mais longe da aldeia e estamos na floresta, eles não ousariam entrar aqui. Podemos seguir com uma caminhada mais moderada daqui para frente.
Bernie assentiu.
– Estamos quase chegando a um lugar que, acredito, poderemos passar a noite. Mais uns vinte minutos de caminhada – disse Haryn.
– Tudo bem.
Depois de caminharem por mais dois quartos de hora, chegaram a um grande carvalho em uma quase clareira na floresta.
– Vamos passar a noite aqui – disse Haryn. – Vou tentar fazer um lugar confortável para as meninas perto daquela raiz.
Haryn juntou algumas folhas próximo ao tronco, onde duas raízes se bifurcavam. Artie emprestou uma de suas capas para colocar sobre as folhas e Bernie deitou Demi na cama improvisada, usando uma das trouxas de roupa como travesseiro. Aisni deitou ao lado da amiga e pareceu adormecer imediatamente.
Mas ela não estava dormindo. Na verdade estava pensando em tudo que ouvira e acontecera até agora. Seus pais e irmãos estavam mortos. Seus amigos estavam mortos e talvez até mesmo Bunn. E ela estava viva. Não sabia se estava feliz ou não por isso, talvez se tivesse morrido com todos os outros, estaria em paz. Mas se estava viva, devia ter algum motivo e não ficaria de luto pelo resto da vida. Havia chorado por todos e sentia muito a falta da família, mas naquela noite decidiu que tentaria ser mais útil na viagem, embora não soubesse em que poderia ajudar. Mas Haryn, Artie e Bernie estavam tentando protege-la, a ela e à Demi, e devia ser grata a isso. Com esses pensamentos e muitos outros, finalmente adormeceu.

Haryn, Artie e Bernie não estavam dormindo, estavam conversando e trocando impressões sobre o caminho até ali. Artie dizia estar sentindo uma presença estranha, que não conseguia identificar, mas era forte e diferente de qualquer coisa que conhecera.
– Não são os homens da floresta. Mesmo tendo pouco contato com eles, reconheço sua presença – disse Artie.
– Também sinto isso e acho que posso ter uma ideia do que seja, mas prefiro não dizer nada ainda. É muito improvável. Se for o que penso, não teremos motivo de preocupação, eu espero. São tempos estranhos – disse Bernie.
– Amanhã pretendo fazer um reconhecimento de parte dessa área. Não quero arriscar levar as meninas para um perigo do qual eu não possa tirá-las. Artur, eu gostaria que viesse comigo e, se não se importar, talvez precise montá-lo por um tempo, enquanto isso Bernie fica e toma conta das meninas.
– Claro, não há problemas.
– Então acho que vocês deviam descansar – disse Bernie. – Eu fico de guarda.
– Mas não a noite toda, você também precisa descansar.
– Não se preocupem, não preciso dormir. Podem descansar à vontade, sentarei perto da árvore e montarei guarda durante a noite. Não faremos fogueira, a noite está quente e podemos comer alimentos frios. Não creio que as meninas vão acordar tão cedo – disse Haryn.
– Tem certeza de que não quer dormir?
– Tenho.
– Se precisar pode nos acordar a qualquer momento.
– Farei isso.
– Você acha que Demi está bem? – Perguntou Artie.
Haryn olhou em direção à menina adormecida.
– Imagino que sim. – Ficou pensativo por alguns momentos e depois completou: – De qualquer maneira tenho algumas ervas que trouxe comigo e que aliviam o cansaço, quando a manhã chegar farei uma infusão para ela, mas não agora, o fogo chamaria muita atenção.
– Muito bem. Até amanhã, então.
– Boa noite, amigos.
Artie se aproximou da árvore e fechou os olhos. Bernie se aconchegou também próximo à árvore e adormeceu, enquanto Haryn ia até uma árvore que circundava a quase clareira e se encostava para ter uma visão completa dos amigos que dormiam. Estava cansado, mas não com sono, e pensou por muito tempo o que faria para manter todos a salvo até que encontrassem Josh novamente. E pensava também em tudo que poderia acontecer até lá. Imaginou se Ethan teria conseguido sair da aldeia e se alguém o acompanhara, mas não esperava encontra-lo logo, já que o aconselhara a não ir para aquela floresta. Talvez o encontrasse além dela. Ainda não sabia o que o levara a procura-lo e avisa-lo do perigo. Olhou para Demi, adormecida, e pensou no quanto essa garota lhe infernizava a vida e, no entanto, ali estava ele, preocupado com seu destino e sua felicidade, apesar de tudo. Mas afastou esses pensamentos logo, sabia que não o levariam a lugar nenhum e passou a pensar na rota mais curta e segura para as montanhas e, assim, a noite passou.
Um pouco antes de o sol nascer, o céu já estava claro e Demi acordou de repente, sem saber onde estava. Viu Aisni deitada ao seu lado, ainda dormindo, e olhou em volta. Artie e Bernie estavam adormecidos também, mas não Haryn. Ele estava de frente para uma pequena fogueira e amassava alguma coisa em uma tigela sobre as chamas. Demi se levantou e se sentiu tonta, tendo que se apoiar na árvore. Haryn levantou os olhos para ela.
– Devia ficar deitada.
Antes de pensar, Demi respondeu:
– Está falando comigo agora?
Dessa vez Haryn não disse nada e Demi pensou que talvez devesse deixar para lá. Preferia ter Haryn para descontar sua raiva do que ele ignorando-a. Como sinal de reconciliação, sentou-se novamente.
– O que aconteceu?
– Você desmaiou.
– Aqui? Não me lembro desse lugar.
– Não aqui. – Haryn continuava a sua tarefa e um cheiro refrescante alcançava Demi.
– Você me carregou? – Perguntou Demi, incrédula.
– Não eu, pirralha. Bernie.
Demi se sentiu um pouco melhor ao reconhecer o velho Haryn ali.
– E o que você está fazendo?
Dessa vez ele não respondeu, mas levantou-se e veio em direção a ela, trazendo a tigela.
– Deixe isso aqui perto de você e Aisni. São ervas para diminuir o cansaço. E descanse bastante, não queremos ter que carregar você durante toda a viagem.
Demi pegou a tigela e colocou aos seus pés. Depois de pensar por um minuto se devia perguntar ou não, disse:
– E para onde estamos indo?
– Para as montanhas.
Antes que Demi pudesse perguntar qualquer outra coisa, Artie e Bernie começaram a se espreguiçar. A menina achou engraçado o fato de os amigos acordarem juntos; eles sempre faziam isso quando estavam no galpão no fundo da taberna.
– Demi! Você está bem? – Perguntou Bernie.
– Sim, estou.
– Nossa, você nos deu um susto ontem.
– Me desculpem.
– Não precisa se desculpar, cabelo de fogo – disse Bernie fazendo bagunça em seu cabelo com a pata, enquanto Artie encostava o focinho em seu nariz.
Haryn estava de volta a sua árvore e comia alguma coisa.
– Artie, pretendo sair em alguns minutos. Você precisa comer alguma coisa antes? – Disse Haryn.
– Não, estou sem fome. Só preciso de um pouco de água.
Demi ajudou a colocar um pouco de água para Artie em sua bacia de viagem e ele tomou tudo; depois disso, Haryn pediu licença pra montá-lo e saíram rapidamente.
– Onde eles foram? – Perguntou Demi a Bernie.
– Foram dar uma olhada no caminho e ver que rota nós devemos tomar, provavelmente teremos o dia todo para descansar.
Enquanto comiam alguma coisa, Aisni acordou e olhou para eles. Seus olhos ainda estavam um pouco vermelho de tanto chorar, mas ela sorriu.
– Você está melhor, Aisni? – Perguntou Demi estendendo a mão para a amiga.
– Sim, um pouco melhor, obrigada – disse.
– Venha comer com a gente – convidou Bernie.
E assim os três passaram a manhã comendo, conversando, descansando e tentando esquecer o que havia acontecido. Por volta do meio-dia comeram novamente. Bernie estava encostado na árvore, com uma das meninas de cada lado, quando Aisni perguntou:
– Você tem alguma ideia do que aconteceu, Bernie? Sabe por que todos foram mortos?
– Não, criança, desculpe. Eu não sei. – E abaixou a cabeça. Demi nunca vira Bernie chorar, e não viu agora, mas havia uma tristeza profunda em seus olhos quando a olhou.
– Eu ainda tenho esperança de que Bunn conseguiu escapar com Ethan e talvez até mesmo alguém da minha família – disse Aisni. – Mas sei que não posso me iludir com esperanças sem fundamento, é só que... como Haryn disse que avisou Ethan, talvez... seja possível. – Seus olhos estavam marejados novamente. Bernie e Demi a olharam com tristeza.
– Não se preocupem, eu estou bem. Vai passar.
Depois disso, eles mudaram de assunto e passaram a falar do lugar onde estavam e para onde iriam.
– Haryn disse que vamos para as montanhas. Mas que montanhas seriam essas?
– Não sei. Pode ser qualquer uma das grandes cordilheiras, não? Ele não compartilha todos os seus planos comigo – disse Bernie.
– Acho que deve ser bonito ver as grandes cordilheiras – disse Aisni.
E todos ficaram em silêncio pensando nas altas montanhas que poderiam encontrar.
Aisni e Demi adormeceram encostadas em Bernie e só acordaram quando a noite já havia caído.
– Eles ainda não voltaram – observou Aisni.
– Não. E estou começando a me preocupar – disse Bernie.
– O que faremos se eles não voltarem? – Perguntou Demi assustada. Nem havia pensado na possibilidade de se afastar de Artie, ou até mesmo de Haryn, que parecia saber aonde ir para encontrar Josh.
– Eles vão voltar – afirmou Bernie.
Passaram-se pelo menos duas horas antes de ouvirem cascos entre as árvores, mas não eram cascos só de Artie. Bernie estava em pé, farejando o ar e, de repente, arregalou os olhos. Demi e Aisni estavam assustadas, escondendo-se atrás de Bernie. Antes que pudessem dizer qualquer coisa, dois cavalos irromperam pela clareira. Artie, com Haryn em seu dorso marrom-avermelhado, e um cavalo completamente negro, que parecia uma noite escura sem estrelas, mas ainda assim brilhava. Mas não era um cavalo comum, ele tinha um único chifre espiralado em sua testa. As meninas o olhavam, admiradas, e Bernie se curvou em uma saudação. Era um unicórnio.

sábado, 1 de outubro de 2016

As crônicas de Iniamar - capítulo 1


Demetria era supostamente uma garota normal da aldeia, exceto que ninguém é realmente normal. Em lugar nenhum e certamente não na aldeia de Buruma. Mas ela não surpreendia mais do que qualquer pessoa surpreende somente por existir. Era alegre, divertida, cheia de amigos, inteligente e trabalhadora e, claro, cheia de opiniões. O problema com pessoas com opiniões demais é que acabam se convencendo de que estão quase sempre certas e esquecem-se de que outras pessoas podem ter suas próprias opiniões e também acreditarem estarem certas. Haryn era outra pessoa cheia de opiniões e Demi nunca gostou de Haryn. Achava-o sem graça, sem assunto, grosso e, obviamente, metido demais achando que suas opiniões eram sempre a verdade. Mas ele quase nunca falava e quando falava era para praguejar e lhe dar ordens e, embora ele não fosse seu chefe, tinha que obedecer, afinal ela servia na taberna de Josh e se alguém lhe pedisse uma caneca de lapo negro, ela tinha que atender. E Haryn estava sempre pedindo uma caneca de alguma coisa. Uma vez o viu beber uma cornada de acolino puro, de uma golada só. Talvez se ficasse sóbrio por tempo suficiente tomaria consciência do quão repugnante é, então preferia estar sempre bêbado, ela pensava. Mas Josh gostava dele, mesmo sem ninguém entender por que, e dizia que ele era um excelente guerreiro e muito sábio. Demi achava que Josh estava começando a perder o tino devido à idade.
Josh era seu pai adotivo. Devido a algum acidente, que variava de natureza a cada vez que era contado, ela havia perdido os pais ainda bebê e Josh a acolhera e criara. Muito bem, há que se dizer. Ela o ajudava na taberna desde os 14 anos, antes ele nunca permitira. Dizia que ela tinha que cuidar da mente. Ensinou-a ler, escrever e pensar, embora ele sempre dissesse que não se ensina um indivíduo a pensar, apenas se oferece as ferramentas. Em alguns dias dizia a Demi que ela pensava demais, mas ela sempre conseguia perceber a satisfação em seus olhos por trás das palavras zangadas.
O amor de Josh pela leitura só era superado pelo de sua pupila e, ainda que pergaminhos fossem bastante raros na aldeia – apenas vistos com mercadores que passavam por lá, como relíquias, ou na casa dos mais abastados –, Josh sempre aparecia com algum novo, com histórias maravilhosas de elfos e homens do sangue dos dragões. Estas eram suas histórias preferidas, embora lesse todas, inclusive as que considerava mais chatas, como as que explicavam a posição das principais aldeias e castelos. Josh dizia que sempre era bom saber onde estava o que, tanto para procurá-lo quanto para evitá-lo. “Não se quer dar de cara com um dragão por acaso, eh?” Bem, ela não se importaria. Sempre quis ser amiga de um dragão.
Seus amigos na aldeia sempre reclamavam de seus pais em algum momento e, às vezes, mesmo parecendo descaso e maldade, Demi se sentia com sorte por seus pais terem morrido e ela ter sido criada por Josh. Ele era incrível, inteligente e sempre foi bom com ela. Nunca sequer tocou no assunto de casamento, pelo que era muito grata, e sempre que ela via aqueles olhos escuros naquela cara mole e barbuda não conseguia evitar um sorriso e a sensação de segurança. Haryn dizia que era porque era burra, já que ninguém estava seguro nunca, mas ela não dava atenção a seu pessimismo e mau humor. Ele a irritava de todas as maneiras possíveis e, no entanto, ela sabia que sempre podia contar com ele e sabia que ele jamais faria nada que a machucasse. Não porque gostasse dela, não! Mas por sua amizade com Josh, que provavelmente devia obrigá-lo a proteger o que ele chamava de “pirralha de cabelo de fogo”. Um dia Moren derrubou uma caneca de lapo negro no vestido de Demi, manchando-o todo, e antes que ela pudesse se recuperar da surpresa e aceitar as desculpas do padeiro, Haryn já estava partindo para cima do sujeito. O pobre Moren não apareceu na taberna por uma semana e só voltou depois que ela lhe garantiu que não estava zangada com ele de modo algum e que Josh lhe disse que Haryn não o importunaria mais.
Não sei se por causa de seu “amigo” zangado ou pela simpatia de Josh, todos sempre trataram Demi com muita bondade e respeito. Ela sempre pensava que eles tinham sorte de viverem em uma aldeia tranquila como Buruma, pois ouvia histórias absurdas de outras aldeias da vizinhança. Ela tinha vários amigos lá, mas seus dois inseparáveis companheiros eram Artur e Bernardo. Artur raramente entrava na taberna, porque ocupava muito espaço, e como o estabelecimento estava sempre cheio ele não conseguia entrar mesmo se quisesse. Artie trabalhava com o ferreiro, puxando suas grandes engrenagens, mas no fim de seu expediente sempre passava pela parte de trás da taberna e Demi dava uma escapadinha para falar com ele. Nos dias de folga, passava o tempo todo com eles, mas não era sempre que os dias de descanso dos três coincidiam.
Bernardo trabalhava na taberna com ela e conseguia servir os clientes muito bem agora, mesmo tendo se atrapalhado muito no início, não conseguindo segurar as bandejas com suas patas grandes. Mas agora ele era o urso mais habilidoso em servir mesas da região. Artur quis trabalhar na taberna também, mas a experiência não deu muito certo. No fim do dia ele tinha quebrado duas mesas e escoiceado um mercador que bateu nos seus quartos para pedir mais uma caneca de lapo. Quando Josh lhe disse que infelizmente não poderia trabalhar ali, ele disse: “Ainda bem! Poderia quebrar uma pata nesse lugar tão apertado”. O edifício da taberna não era pequeno, mas Artur era o maior cavalo que qualquer um ali já tinha visto. Subir as escadas para ir até a casa, no piso superior, não era nem uma opção.
Bernardo também era tão grande quanto um urso marrom poderia ser, mas ele era habilidoso o suficiente para não deixar que seu tamanho atrapalhasse e, sendo uma fonte inesgotável de histórias e anedotas, todos o adoravam.
Quando os mercadores chegavam à aldeia, Josh fechava a taberna por uma semana inteira, já que sempre havia todo tipo de bebidas no pavilhão da feira dos mercadores, e então Artur, Bernardo e Demi tinham toda liberdade e dinheiro que poderiam querer. Na segunda semana Josh voltava a abrir, já que os mercadores adoravam o lapo da taberna, tanto o negro quanto o dourado, e geralmente nessa semana eles lucravam o suficiente para um ano todo. Os mercadores eram generosos com seu dinheiro quando se tratava de boa bebida.
Os mercadores vinham uma vez a cada seis meses e ficavam por duas semanas na aldeia. Lá se fazia duas festas para celebrar o que chamavam de quinzentina. A festa de abertura, que acontecia no dia em que chegavam, e a festa de encerramento, celebrada um dia antes de partirem. Mas para Demi e seus amigos, todos os dias eram de festa e eles aproveitavam todas as quinzentinas muito bem. A próxima quinzentina seria em cinco semanas e já estavam todos alvoroçados. Artur queria uma capa dourada para usar na festa de abertura e Demi estava tentando convencê-lo de que dourado não combinava com seu pelo avermelhado e brilhante, mas ele não queria ouvir e ela certamente não desistiria. 
Bernardo estava pensando em um colete de couro negro com bordas brancas e a garota achava que lhe cairia muito bem. Demi usaria seu vestido branco com ramos vermelhos na barra e nas pontas das mangas longas, com um cinto de couro de dragão vermelho, bem fino para não parecer exagerado. Seu cabelo estaria trançado com tiras de couro branco, pois ela sempre achava que o branco caia bem no meio de toda a vermelhidão de seu cabelo. Estaria bonita, com certeza.
Demi ouvira dizer que haveria mais que dois menestréis dessa vez, o que a fez ficar ainda mais ansiosa. Os menestréis eram a sua atração favorita, junto com os contadores de histórias. Em seus sonhos secretos sempre se imaginava casada com um dos cantores poéticos do reino, mas nunca dizia isso a ninguém. Ririam dela e ela odiava que rissem dela. Mas sua maior preocupação até a quinzentina era fazer com que Artie mudasse de ideia em relação à cor de sua capa para que ela pudesse costurá-la logo. E achava que tinha encontrado uma maneira de convencê-lo.

No dia em que colocou seu plano em ação Josh a encarou com olhos divertidos e interrogadores. Ele sabia que ela detestava dourado porque o contraste com o vermelho vivo de seu cabelo fazia com que parecesse algum tipo de chama estragada. E quando lhe perguntava o que era uma chama estragada ela simplesmente respondia “Não importa o que é de verdade, importa que é o que eu vejo no latão quando visto dourado!” Nesse dia ela esperava que o brilho do sol lá fora acentuasse o absurdo da combinação.
– Demi!
Era a voz de Artie na janela.
– Artie! Veio mais cedo hoje?
– Não. Que vestido é esse?
– Ganhei de aniversário ano passado.
– Nunca tinha visto. Você fica bem nele e é esse dourado que quero para minha capa.
– O quê? Artie, você está cego? Esse vestido não fica nada bem em mim porque vermelho não combina com dourado!
– Isso é o que você diz. Para mim combina e muito combinado, como feno e água, é uma questão de gosto.
– Gosto? Não! A menos que você tenha gosto em parecer ridículo.
– Não me importa sua opinião.
– Por favor, Artie! Eu estou fazendo isso pelo seu bem.
– Mas eu quero uma capa dourada! E já comprei os panos, não tem volta...
– Eu faço uma capa dourada para você, mas não para a festa, tudo bem?
– Por que não para a festa?
– Porque eu quero todos de branco.
– Bernie não vai de branco.
– Seu colete tem bordas brancas...
Artie ficou pensativo.
– Mas eu não tenho panos brancos e não quero gastar mais dinheiro com isso.
– Eu compro.
– E você promete que terei minha capa dourada também?
– Sim, prometo.
– Para a festa de encerramento?
– Veremos...
– Tudo bem então, que seja branco.
– Obrigada, Artie, você é demais! Tenho que voltar agora, até amanhã!
– Vai, desnaturada, me impedindo de usar o que quero só porque não gosta de dourado, eu gosto, oras...
Ainda podia-se ouvir Artie resmungando enquanto ela se afastava, mas não importava. Ele não usaria dourado. E ela não ficaria nem mais um segundo com aquele vestido horroroso.

O tempo de Demi nas próximas semanas era dividido entre ajudar na taberna, costurar a roupa de seus amigos e ler um pergaminho particularmente chato sobre todas as montanhas ao norte da Grande Fonte. Mas sempre que percebia que Josh não estava de olho, mudava para um pergaminho sobre a história dos primeiros homens do sangue dos dragões. O fato de nunca saber se aquilo tinha acontecido mesmo ou eram só histórias a deixava fascinada. Mas como poderia ter acontecido? Seria possível que os dragões se sujeitariam a um acordo com os homens? E por que o fariam? O pergaminho que estava lendo dizia ser por necessidade, embora não explicasse de que tipo, mas já lera em outros que um homem ameaçou os dragões. Mas Demi não conseguia imaginar qualquer ameaça que pudesse amedrontar todos os dragões, principalmente o Grande Ulmur.
Com a mente ocupada com todas essas questões não percebeu que estava murmurando e que Josh havia se aproximado e quase caiu da cadeira quando ele disse:
– Por mais alto e forte que Ulmur fosse, duvido que fosse uma montanha.
– Josh! Quer me matar de susto?
– Não, mas custa terminar o pergaminho das montanhas? Não é tão ruim assim.
– Mas é tão chato e tão inútil.
– Não duvido da utilidade de saber os pensamentos secretos de Ulmur, o Grande, mas, digamos, que é muito mais provável que você tenha que lidar com as montanhas do norte do que com Ulmur e sua raça.
– Não necessariamente. Se qualquer coisa pudesse fazer com que me dirigisse ao norte, quem poderia me garantir que não encontraria Ulmur?
– Eu.
– E como pode ter tanta certeza?
– Por que Ulmur está morto, oras.
– Tá mesmo?
– Como assim, tá mesmo? Claro que tá!
Da taberna veio o som de uma caneca se quebrando e o rugido de Bernie.
– Anda, larga isso e vai trabalhar. Já leu demais por hoje. O pobre coitado do Bernie deve estar todo esbaforido.
Sem esperar nem mais um segundo ela desceu as escadas. Gostava de trabalhar e se divertia na taberna e já que não podia ler sobre os homens do sangue dos dragões preferia a cara feia de Haryn às montanhas do norte.
Quando chegou lá embaixo Bernie já havia limpado os cacos da caneca quebrada, mas ainda tinha a cara zangada.
– O que aconteceu, Bernie?
– E eu sei? Tava atendendo a mesa e de repente uma caneca quebrou no balcão, sem motivo nenhum.
– Foi o vento. – Disse Haryn.
– Não foi a porcaria do vento, porque não tem vento! – Disse Bernie zangado.
– Talvez tenha sido você, Haryn.
– Talvez tenha, mas você nunca vai saber, vai, pirralha?
Virando as costas para Haryn, ela tentou acalmar seu amigo:
– Não ligue, Bernie, foi só uma caneca, deixa pra lá.
– Não gosto dessas coisas. Tem que ter uma explicação, nada quebra assim, sem nenhum motivo. Não gosto disso, não gosto.
– Também não gosto, Bernie, mas ficar nervoso não vai explicar nada. Deixa pra lá!
Ainda resmungando Bernie foi servir as mesas enquanto Demi assumia o balcão. Ela odiava quando tinha que ficar no balcão, porque era onde Haryn sempre ficava. Mas não tinha escolha já que Josh tinha coisas a fazer lá em cima e só voltaria mais tarde.
Por mais que Haryn a irritasse, Demi nunca deixava de sentir curiosidade sobre o homem. O que será que teria feito para ganhar a confiança de Josh? Como poderia ser sábio e um guerreiro se só ficava na taberna bebendo? Se bem que sumisse por uns dias de vez em quando, mas não havia nenhuma guerra em curso, nada para lutar, nenhum lugar para ser guerreiro. Quantos anos teria? Demi não tinha a mínima ideia sobre nada disso e por mais que odiasse o modo como ele a desprezava e o jeito rude com que respondia suas perguntas, nunca desistia de tentar descobrir o que quer que fosse sobre ele. Mas ela sempre tentava não perguntar diretamente. Achava que teria mais chance de sucesso se disfarçasse o que realmente queria saber, então pensou em perguntar sobre os homens do sangue dos dragões, assim, talvez, conseguiria algumas informações sobre isso também.
– Oh, Haryn! O que você sabe sobre os homens do sangue dos dragões?
Ele sempre a olhava como quem queria matá-la só por ter ousado abrir a boca antes de responder.
– Que não existem mais.
Mas ele sempre respondia, mesmo que fosse uma resposta idiota.
– Isso todo mundo sabe. Mas você deve saber alguma coisa de quando eles ainda existiam. Josh diz que você é tão sábio...
Dessa vez parecia que ele não ia responder, mas depois de passar uns bons minutos encarando Demi ele começou a falar.
“Os homens do sangue dos dragões era uma raça muito poderosa, que não existe há mais de 300 anos, mais ou menos. Mesclaram seu sangue com o dos dragões há milênios atrás por meio de um acordo jamais revelado e um ritual secreto. Shaian e Ulmur foram os representantes das duas raças que deram início à união, que tinha que ser renovada a cada mil anos, pois o poder do sangue dos dragões enfraquecia com o tempo no sujo sangue dos homens. No ano da Última Renovação algo deu errado e o representante humano do ritual foi assassinado. Ninguém sabe o nome do humano, pois embora fosse o reinado do Rei Tomus, ele foi encontrado morto em seu castelo e as histórias dizem que o corpo encontrado era de uma mulher. Supõe-se ser sua rainha, mas ninguém nunca se interessou muito sobre o assunto.” 
Ele parou para tomar um gole de seu corno e Demi voltou a fazer perguntas.
– Mas quem iria querer assassinar os homens do sangue dos dragões? E por quê? Quem poderia ser? E os dragões, o que fizeram?
– Não fizeram nada, o que iriam fazer? Não havia nada que pudesse ser feito. Os dragões se esconderam com medo de serem assassinados e esperaram para ver o que essa criatura iria fazer. Mas nada foi feito e nada aconteceu. Como o reino precisava de um novo rei, um escriba, fiel a Tomus, assumiu como rei, já que ele era o único dos sobreviventes com conhecimento aceitável para governar. Com o choque de ver toda a família real assassinada, ninguém se opôs. Seja por medo ou por conveniência. Assim começou a nova linhagem real. Nem de longe tão nobre quanto a anterior e com um décimo da longevidade daqueles do sangue dos dragões, mas é o que temos.
– Mas quem, quem poderia querer e poder matar toda a linhagem? Por que motivo?
– Ninguém sabe, né, pirralha! Quando Auri, o Escriba assumiu o reino disse que ficaria de olho, mas para sorte dele nada aconteceu até sua morte. Gostaria de ver o que Auri, o Mão de Pena, faria contra o assassino de Tomus. HA! Queria mesmo ver! Muitas pessoas desapareceram desde que tudo isso aconteceu, mas nada muito mais alarmante do que sempre foi, embora alguns defendam que esse ser maligno continue por aí tramando algo, mas se isso é verdade ou não eu não sei e sinceramente não me importo.
– Não se importa ou tem medo? – Disse Demi maliciosamente.
Os olhos de Haryn brilharam perigosamente em sua direção e dessa vez ele não respondeu. Nada disso que ele contara era grande novidade para Demi, mas ela precisava dar rodeios para perguntar o que realmente queria.
– Nossa, você sabe tudo isso como? Você lê?
– Já li.
– Quando era novo?
– Quando podia.
– Quantos anos você tem?
– Mais do que você. – Disse levantando e saindo. Ainda na porta gritou: – Diz para Josh me encontrar na saída da aldeia em uma hora.
– Ele tá ocupado, não sei se vai poder.
– Só dá o recado, pirralha!
– Não, espera! Só uma última pergunta!
Ele parou, impaciente.
– Sim?
– Por que os dragões não fizeram um novo acordo com Auri?
Ele a encarou por alguns segundos antes de dizer:
– Porque eles não gostavam da cor do cabelo dele. – E saiu batendo a porta.

As semanas que antecederam a quinzentina passaram rápido para Demi. Com toda a costura que precisava fazer, o trabalho em convencer Artie a não usar a capa dourada no encerramento e o trabalho na taberna, ela nem viu o tempo passar. O fato de Haryn estar ausente também ajudou, já que sem a sua carranca por perto o ambiente se tornava muito mais agradável na opinião dela. No fim do expediente da antevéspera da quinzentina, Moren falou que pelo menos dois contadores de história iriam contar a história da Última Renovação e finalmente revelar o segredo do ritual dos dragões. A cada quinzentina aparecia pelo menos cinco contadores de história e até alguns menestréis afirmando revelar o ritual secreto dos dragões e todos iam para ouvir, inclusive Josh e Haryn. Demi sempre elegia um favorito por ano e depois tentava buscar nos pergaminhos alguma coisa que confirmasse a veracidade da história, mas nunca conseguia nada e Haryn sempre a chamava de idiota por sequer pensar em acreditar naquela baboseira. A preferida de Demi até hoje tinha sido a versão que ouvira na última quinzentina, em que o dragão engolia o representante dos homens e depois o cuspia numa labareda de fogo. Ela estava ansiosa para ver qual versão maluca iriam inventar dessa vez.
No dia seguinte Josh a dispensou do trabalho para terminar a tempo a roupa de Bernie e Artie e Bernie teve que subir pelo menos duas vezes para provar seu colete, até ficar completamente satisfeito. Como sempre, agradeceu Demi com um grande abraço e uma focinhada. Ela adorava. Já com Artie não era tão fácil. Como ele não podia subir e Lote, o ferreiro, não permitia que ele fosse até à taberna em horário de serviço, Demi tinha que levar sua capa até lá. Felizmente a capa ficou perfeita e ela não teve que fazer todo o caminho novamente. Uma grande capa branca com ramos vermelhos e negros na beirada, assim como o vestido dela.
– Gostou, Artie?
– Nossa, nossa! Nossa! – Era tudo que Artie conseguia dizer enquanto se virava para todos os lados e experimentava um rápido trote pra ver como a capa ficaria ao vento. 
– Que bom que gostou. Viu, tem essa capa linda, sua capa cor de creme do encerramento e mais a sua capa dourada, que você pode usar quando quiser.
– A capa dourada já está pronta?
– Ainda não. Dei preferência para as roupas de amanhã, claro, mas está quase pronta.
– Posso passar mais tarde para ver?
– Claro, Artie. Agora me deixe tirar a capa e voltar pra casa. Ainda tenho que fazer alguns ajustes nas roupas de encerramento e Lote já está de cara feia, veja lá.
– Ah é... passo lá mais tarde. – Disse Artie enquanto se aproximava para Demi poder tirar a capa e voltar saltitante para casa. Ao longe já se podia ver o grande pavilhão, quase pronto para receber os mercadores na manhã seguinte. Demi não conseguia imaginar ser possível maior felicidade do que ela estava sentindo naquele momento.
Na noite que antecedia o início da quinzentina a taberna sempre tinha um movimento menor e às oito horas Josh já havia fechado e saído para ajudar nos últimos preparativos do pavilhão. Demi, Artie e Bernie se reuniriam no galpão no fundo da taberna que, durante as próximas duas semanas, seria a casa de Artie e Bernie. Toda quinzentina eles faziam isso, era mais fácil. Depois de deixar as roupas para a festa do dia seguinte impecáveis, Demi desceu para combinar os últimos detalhes com os amigos. Quando estava saindo pela porta lateral trombou com uma figura grande e forte. Antes que pudesse gritar a figura tapou sua boca e falou:
– Sem gritar.
Era Haryn. Estúpido e silencioso Haryn. O coração de Demi estava disparado e além de assustada estava muito, muito brava.
– Você é louco? Acha que pode fazer isso, seu idiota?
– O que, exatamente? Abrir portas e passar por elas? Creio que sim.
– Seu estúpido! Quase me mata de susto!
– Sério? Achei que você fosse corajosa e não tivesse medo de nada. – Disse ele em tom zombeteiro.
– Você é um idiota, é isso o que você é! Vou contar tudo para o Josh.
– Uh! Agora fiquei com medo. Onde ele está? Preciso falar com ele.
Ela pensou em não responder, virar as costas e fingir que ele não existia, mas sabia que se fizesse isso Josh ficaria triste com ela, então respirou fundo e disse:
– Está no pavilhão.
Ele virou as costas e saiu, sem dizer nada, e ela ainda nervosa pelo susto gritou:
– Por que voltou, hein? Ninguém sente sua falta mesmo. Podia ter ficado por onde estava.
Ele parou, deu aquele sorriso horroroso dele e respondeu:
– Saudade de você, pirralha. – E continuou andando.
Demi não se conformava com a ousadia daquele homem odiável e pensou que falaria com Josh. Pelo menos ele teria que lhe dizer por que ela era obrigada a suportá-lo. Pelo menos isso. Depois de passar alguns minutos ainda fervendo de raiva, saiu e foi para o galpão encontrar os amigos.

E finalmente a quinzentina chegara. Demi acordou ansiosa e feliz e escolheu um vestido leve para passar o dia, pois estava calor. Josh já havia saído, então ela correu para acordar Artie e Bernie, mas ambos já estavam de pé e animados.
– Não vou usar roupa durante o dia, está muito quente e assim meu colete de festa vai se destacar ainda mais à noite. – Disse Bernie
– Tá metido hein.
– Ah, Demi, eu poderia usar minha capa dourada, né?
– Não, Artie! Está quente e nesse sol você iria cegar as pessoas com aquela capa.
– Não entendo sua implicância com minha capa.
– Não é implicância, eu só acho que não combina.
– Depois da quinzentina vou usá-la todos os dias, só para te atormentar.
– Eu sei.
– Se vocês já terminaram a troca de farpas, podemos ir?
– Claro!
Quando os três amigos chegaram ao pavilhão o relógio de pedra do centro ainda não marcava dez horas da manhã, mas já havia muitas pessoas por lá e mais gente chegando. Muitos mercadores já tinham suas barracas montadas e já vendiam suas mercadorias e muitos mais estavam chegando para apresentar seus produtos.
Bernie já estava parado em frente a uma barraca de potes de mel e Demi e Artie sabiam que ele passaria um bom tempo lá.
– Vem, Artie, vamos dar uma olhada naqueles tecidos, se o Bernie precisar de dinheiro ele procura a gente.
E assim eles passaram toda a manhã. Almoçaram nas barracas de comida dos mercadores, pois era a única oportunidade que tinham de comer comidas diferentes de lugares distantes. Havia frutas que só eram encontradas no Norte e havia carnes de animais estranhos. Mas era tudo delicioso e diferente.
Durante a tarde eles continuaram em sua missão de reconhecimento das barracas e suas especiarias. Havia uma delas com uma diversidade de pedras de várias cores e tamanhos. Algumas dessas pedras eram safiras e esmeraldas, mas havia também pedras não preciosas, apenas para enfeitar a casa e Demi adorava essas.
Uma delas era de um vermelho muito parecido com o cabelo de Demi e Bernie ficou maravilhado com a semelhança.
– Demi, você precisa comprar essa, é a sua cara. Se você não comprar, eu compro.
Demi olhava diretamente para a pedra e parecia nem ouvir Bernie. Nem mesmo parecia uma pedra, parecia mais um pedaço muito espesso de vidro vermelho, muito vermelho.
– De onde vem essa pedra? – Perguntou Demi.
– Vem de uma das altas montanhas dos dragões, menina. Meu marido encontrou essa pedra em uma de suas viagens e quando perguntou a um viajante, ele jurou que era das montanhas dos dragões, ele jurou, menina.
– Tudo bem, não tem importância, era só curiosidade. Vou levar.
– Muito bom, muito bom. Mais alguma coisa?
– Sim, vou levar também essa azul e essa preta, que são parecidas.
– Muito bom, muito bom, criança. São três moedas.
Enquanto se afastavam da barraca, a mulher olhava com um olhar curioso para os três amigos, mas nenhum deles percebeu, pois estavam todos tagarelando sobre suas compras do primeiro dia.
– Bem, acho que já está na hora de irmos para casa levar nossas compras e nos prepararmos para a festa de abertura. – Disse Demi.
– Mas já?
Demi riu. – Artie, ainda temos 14 dias de quinzentina, você vai ter tempo de sobra.
– Eu sei, mas é que o primeiro dia é tão legal.
– Mais legal ainda é a festa. Vamos logo, tenho que lavar meu cabelo.
Já passava das quatro horas quando chegaram à taberna e encontraram Josh e Haryn conversando baixo. Demi abraçou Josh e fingiu não ver Haryn, que estava com seu sorriso de zombaria no rosto, como sempre.
– Como foi o primeiro dia? Comprou muita coisa? – Perguntou Josh.
– Só algumas coisinhas. Todos sabem que os mercadores guardam o melhor para o final.
– É verdade.
– Bem, vou ajudar Artie a tomar banho e depois tenho que lavar o cabelo.
– Tem mesmo, nem parece mais vermelho e sim marrom de tanta sujeira. – Disse Haryn sorrindo. 
Demi não respondeu, só lançou um olhar de paralisar dragão a ele e por um momento pensou ver medo em seus olhos e seu sorriso vacilar, mas foi só impressão. Josh não dizia nada, apenas balançava a cabeça para a teimosia dos dois.
Depois de ajudar Artie – e até mesmo Bernie – a ficar limpo e cheiroso, Demi subiu para o seu banho e combinou de se encontrar com os amigos às sete horas. Aisni, uma garota da aldeia e amiga de Demi, a ajudaria com o cabelo. Pela primeira vez Demi havia decidido fazer algo com o seu cabelo para a festa ao invés de ir com ele solto, como sempre fizera. Seu plano original era trançá-lo com fitas brancas, mas Aisni dera uma ideia diferente e Demi adorou.
Quando as meninas desceram, Artie e Bernie já estavam esperando. Artie em sua capa branca e com o pelo brilhando e Bernie com seu colete preto e branco sobre seu pelo marrom avermelhado limpo e escovado. Haryn e Josh também já estavam prontos para ir. Josh, como sempre, muito bem vestido, mas com simplicidade e Haryn nem parecia ter tomado banho ou mudado de roupa. Todos olharam quando Demi desceu, pois ela estava deslumbrante. Seu vestido branco fora feito a partir de um desenho que ela havia visto em um livro de História, que falava sobre a linhagem dos homens do sangue do dragão. Era branco e com ramos vermelhos na barra e nas mangas, um decote modesto e mangas longas e largas a partir do cotovelo. Seu cabelo fora preso de maneira que parecesse apenas ondas vermelhas em seu couro cabeludo e fitas brancas bem finas para enfeitar.
Demi estava feliz com os olhares de Artie e Bernie e Josh estava encantado com sua filha, podia-se ver lágrimas querendo saltar de seus olhos, mas o que mais chamou a atenção de Demi e a deixou espantada foi o olhar que viu nos olhos de Haryn. Não sabia o que era, mas pela primeira vez ele não estava zombando dela. Isso durou apenas alguns segundos, pois Haryn virou-se e foi para fora.
– Minha filha, você está linda!
– Realmente, Demi, você parece uma princesa. – Disse Bernie. – E você também, Aisni, está muito linda.
As meninas sorriram. Aisni tinha o cabelo cor de ouro que caía em cachos bem definidos até metade de suas costas e vestia um vestido azul da cor do céu. Prendera parte do cabelo com um laço da cor de seu vestido.
– Obrigada, vocês! Mas só estão falando isso porque são meus amigos. Aisni está mesmo linda.
– Ora, Demi, digo o mesmo! Mas não tem problema. Estamos todos lindos e vamos à festa!
Todos assentiram animados e saíram. Haryn não estava à vista, mas logo que chegaram perto da grande barraca no centro, onde a festa se realizaria, Josh se afastou e foi encontrá-lo perto de um dos grandes troncos que servia para suportar a barraca. Demi olhou para Haryn, ainda não entendendo o que tinha acontecido um pouco antes e se sentiu ainda mais incomodada, mesmo ele não tendo lançado sequer um olhar em sua direção agora. Mas era dia de festa e não queria estragar as coisas pensando naquele homem desagradável. 
Muitas pessoas já estavam chegando para a festa, todas muito bem vestidas. As festas de abertura e de encerramento da quinzentina eram as únicas que aconteciam na aldeia, então praticamente todos estavam lá, mesmo os doentes faziam um esforço para não perderem a festa.
O grupo de amigos parou perto de uma barraca que vendia hidromel e cada um comprou um copo. Enquanto estavam bebendo, rindo e conversando, a banda começou a tocar; logo depois Ethan convidou Demi para dançar e ela foi. Em seguida Bunn apareceu e convidou Aisni; Artie e Bernie ficaram se contorcendo em seus lugares, e chamavam aquilo de dança.
– Nossa, Demi, você está muito bonita! – Disse Ethan.
– Obrigada, Ethan. – Respondeu Demi, toda tímida. Gostava de Ethan e sabia que ele gostava dela, mas era tímida demais para admitir isso para ele ou mesmo para qualquer pessoa, inclusive ela. Mas estava muito feliz em saber que ele havia gostado de como ela estava.
Demi dançou três músicas com Ethan e depois foi para junto dos amigos. Aisni também estava lá e as meninas estavam cheias de segredos e risinhos.
– Mas que tanto vocês cochicham? Deve ser muito engraçado mesmo...
– Coisas muito sérias, na verdade, Artie.
– É, como se a gente não soubesse que estão falando dos meninos.
– Não estamos falando dos meninos nada! – Disse Demi, ficando vermelha. Não gostava que seus amigos pensassem nela como uma menina boba que queria um namorado.
– Tudo bem, Demi. – Disse Bernie – É normal você querer falar dos meninos.
– Mas eu não estou! – Disse ela ainda mais envergonhada.
– Então não está, pronto! – Disse Bernie, mas ele e Artie estavam se divertindo, pois sabiam como Demi ficava brava com assuntos como esse. – Artie e eu vamos dar uma volta e logo voltamos.
Depois que eles saíram, Aisni perguntou:
– Por que você não diz pra eles?
– Não gosto de falar sobre isso com eles... não entenderiam.
– Claro que entenderiam, Demi. Admite, vai, você tem vergonha.
– Tenho nada! Só não é da conta deles.
Aisni sabia bem como Demi era e que nunca admitiria, mas era engraçado ver como ficava vermelha de vergonha por saberem exatamente o que queria esconder.
– Vem, Aisni, vamos dar uma volta também.
E elas começaram a circular por entre as pessoas. Não viram sinal de Artie e Bernie, ou mesmo de Josh, mas Haryn estava ainda no mesmo lugar, agora conversando com um homem de fora, provavelmente um mercador. Parecia despreocupado e quase feliz e Demi nunca o tinha visto assim. Ficou olhando por um tempo até que Haryn se virou e olhou-a e o desprezo estava de volta aos seus olhos. Demi fingiu nem se importar e continuou andando, olhando para o outro lado.
Logo depois Ethan apareceu e pediu para falar com Demi. Aisni a encorajou a ir e saiu em silêncio. Ethan deu uma flor vermelha para Demi, que a fez ficar da mesma cor.
– Obrigada!
– É para você se lembrar de mim quando estiver em casa.
– Eu me lembro. – Disse apressada e imediatamente se arrependeu. – Me lembro de todos os meus amigos. – Completou desajeitadamente.
– Eu sei. – Disse ele, mas estava sorrindo. – Demi, você sabe que eu gosto de você, não sabe?
Ela sabia, mas não diria isso. Na verdade ela não sabia o que dizer. Abriu a boca e fechou novamente, olhou para o lado e viu que Bunn também estava falando com Aisni, que sorria. Será que todos os meninos de Buruma haviam resolvido se declarar hoje? Quando olhou novamente em direção a Ethan, ele estava muito mais próximo e, antes que percebesse o movimento, ele a beijou.
O beijo foi rápido, mas pareceu uma eternidade para Demi. Era seu primeiro beijo; ela havia sido beijada pela primeira vez e tinha gostado. Tomou coragem e olhou para Ethan, ele estava sorrindo e segurava a sua mão, embora ela não conseguisse se lembrar de quando ele a havia pegado. Ela sorriu de volta.
Nunca pensara em ter um namorado, pelo menos não um que não fosse um grande cantor ou contador de histórias, que viajasse pelo mundo. Mas agora estava ali, com alguém que a fazia se sentir diferente, alguém que ela não se importaria de chamar de namorado. Enquanto pensava tudo isso viu, por cima do ombro de Ethan, Haryn parado e olhando diretamente para ela. Mais uma vez ele sorria de forma zombeteira e Demi soube na hora que ele havia visto tudo e se sentiu irritada, soltando a mão de Ethan.
– O que foi?
– Nada, não foi nada. Vamos dar uma volta?
– Claro. 
Demi percebia que Ethan estava confuso, mas precisava sair do alcance de visão de Haryn, então andava depressa e Ethan teve que se apressar para alcançá-la.
– Eu fiz alguma coisa errada, Demi? Se fiz, me desculpe!
– Não, não... você não fez nada errado. – Disse ainda andando apressadamente. Quando já estavam a uma distância considerável de onde Haryn estava, ela parou. Estava muito irritada. Por que Haryn tinha que estragar tudo? Aquele momento era dela, dela e do Ethan, por que ele tinha que estar lá e estragar tudo?
– Demi, o que foi?
– Nada. Eu só fiquei surpresa, foi só isso. Desculpe, Ethan. – Ela se sentou em um tronco próximo.
– Não precisa se desculpar! Está tudo bem se você não sente o mesmo por mim. – Disse ele com voz triste.
– Não! Não, não é isso. Como eu disse, eu só fiquei surpresa. Eu... eu também gosto de você, Ethan. – Disse ela em voz baixa, voltando a enrubescer.
– Gosta?
– Sim.
Ele estava sorrindo novamente. – Posso me sentar ao seu lado então?
– Claro que sim.
Logo depois ela já havia esquecido Haryn e todo o resto. Ficaram conversando por muito tempo, até que perceberam que a música tinha parado, o que queria dizer que estava na hora das histórias. Eles seguiram até o local onde estava o palco e Demi se despediu de Ethan. Logo à frente encontrou Aisni com Artie e Bernie.
– Onde você estava? – Perguntou Bernie.
– Por aí, andando. – Aisni sabia que ela estava com Ethan e elas se entreolharam com um sorriso. Mas não havia mais tempo para perguntas e respostas porque o cantor estava no palco e já dedilhava a sua harpa.
Havia sempre um cantor e um contador de história por noite, durante toda a quinzentina e, como já era esperado, o cantor da noite de abertura cantaria sobre o ritual da Última Renovação. Segundo ele a história era do verdadeiro ritual e fora contada por um dos dragões do Norte. Todos ficaram em silêncio e ele começou.
Cantou sobre ameaças e guerras entre os homens de antigamente e os dragões e também sobre como haviam chegado a um acordo de unirem seus sangues para o bem de ambos, embora ele não tenha explicado o que os dragões ganhavam com essa união. E depois começou a falar do ritual: uma dança macabra em que o homem se mutilava inteiro e depois se jogava em uma fogueira acesa com o fogo de um dragão, e quando o espírito do homem deixasse o corpo, era aprisionado em uma garrafa com o sangue do dragão. Para renovar a aliança, o herdeiro do reino deveria tomar o sangue da garrafa em que o espírito havia sido aprisionado. Depois cantou o que deu errado na Última Renovação, dizendo que o mensageiro que levava a garrafa ao reino foi emboscado e assassinado por um grupo errante. Antes de terminar essa péssima canção, ainda disse que tal infortúnio ocorreu por ter sido uma mulher e não um homem a participar do ritual.
Demetria olhou para Josh e Haryn e os dois estavam se divertindo com a tosca apresentação. Pessoas aplaudiam, mas mais por educação do que por qualquer outro motivo. Era a pior versão que Demi já tinha ouvido.
– Que porcaria é essa? Ele desconsiderou completamente o fato de Tomus ter sido assassinado no mesmo dia, quando inventou essa balela de ter sido um acidente o assassinato do mensageiro com a garrafa. E, sério? Um espírito aprisionado em uma garrafa de sangue? Até a versão do churrasco de dragão é mais aceitável.
– Sim, realmente. Essa foi a versão mais idiota que já ouvi. – Concordou Artie.
– Meu pai conta que quando ele era menino, ele ouviu uma versão que dizia que um homem e um dragão davam cem pulinhos de mãos dadas. – Disse Aisni e os quatro amigos caíram na gargalhada e só conseguiram parar quando o contador de história já começava seu conto.
Ele contou a história de uma donzela que se apaixonara por um guerreiro inimigo. Demi já ouvira essa história milhões de vezes, pois todos gostavam de contá-la. Mas pela primeira vez ela não se importou em ouvir uma história de amor. Seu coração se comoveu com o destino dos dois amantes e ficou se perguntando o que Ethan teria feito com ela. Mas estava feliz, muito feliz. 
Despediram-se de Aisni, que foi para casa com sua família, e seguiram para a taberna. Demi esperava que Haryn não estivesse por lá, não queria vê-lo. Quando chegaram em casa, já passava das onze horas e Josh já estava lá, mas não Haryn, para alívio de Demi.
– E então, gostaram?
Todos começaram a falar ao mesmo tempo e Josh sorriu, sabendo que, como sempre, eles haviam adorado tudo. Menos uma coisa.
– O que foi essa versão do ritual, pai?
Josh sorriu. – Uma das piores, creio. Nem ao menos foi bem construída. 
Eles contaram da versão dos pulinhos e todos voltaram a rir.
– Sim, eu me lembro dessa. – Disse Josh. – Lembro que o coitado do cantor nem conseguiu terminar sua canção por causa das gargalhadas do público.
– Qual foi a melhor versão que você já ouviu, Josh? – Perguntou Bernie.
Josh pensou por alguns minutos antes de responder:
– Acho que foi uma que ouvi quando era muito menino ainda, nem foi aqui em Buruma. Era uma versão que falava da invocação de um poderoso espírito, mas não me lembro direito, gostaria de ter anotado.
– Parece boa mesmo. – Disse Artie; e depois de um momento em que ficaram todos pensativos, Bernie falou:
– Bem, temos que ir dormir porque amanhã tem mais e ainda temos mais quatorze versões para ouvir, provavelmente.
– Sim, sim, é verdade. Boa noite a todos vocês e até amanhã. Podemos ir um pouco mais tarde amanhã, né, Demi?
– Claro.
Depois que eles saíram, Demetria ainda ficou sentada por um tempo e Josh perguntou se havia alguma coisa errada.
– Não, não tem nada. – Respondeu Demi. Não gostava de esconder nada de Josh, mas não queria contar sobre Ethan. Não agora, talvez outro dia. Mas aproveitando o momento com o pai, resolveu perguntar sobre Haryn.
– Pai, por que mesmo você é amigo do Haryn?
– Isso de novo?
– Você nunca me respondeu.
– Eu gosto dele.
– Mas por quê? Ele é ignorante, insensível e irritante.
– Filha, Haryn não é nada dessas coisas, você só não o conhece muito bem.
– Como não? Eu o conheço desde que me entendo por gente.
– Não o mesmo Haryn que eu. E chega desse assunto! Eu sei que minhas palavras não vão te convencer de nada, mas garanto que um dia você vai mudar de opinião sobre ele.
– Acho muito impossível.
– Eu sei que acha. Boa noite, Demetria.
– Boa noite.
Demi estava irritada novamente. Seu pai nunca lhe dizia nada sobre Haryn e isso era frustrante. Não conseguia entender. Provavelmente Haryn estava enganando seu pobre pai. Mas, enquanto subia para o seu quarto seu pensamento voou para Ethan e momentos mais agradáveis e lembrou-se de como era bom ter alguém que gostasse dela. Ela foi dormir se sentindo bem, apesar de Haryn.

Quando acordou, Demetria estava assustada. Sonhara com a história contada na noite anterior e ela era a donzela, mas o guerreiro era Haryn. Ficou brava consigo mesma por sonhar tal bobagem e se convenceu que sonhara esse absurdo por causa das palavras de Josh. Tentou esquecer o sonho idiota, mas não conseguiu, principalmente quando desceu para tomar café e encontrou Haryn com Josh.
– Bom dia, pirralha! Tudo bem?
O tom de zombaria era ainda maior hoje. Demi não respondeu. Passou direto pela taberna, desistindo do café e indo encontrar seus amigos. Mas eles não estavam lá.
– Onde estão Artie e Bernie?
– Já foram. Eu ia te falar, mas nem deu tempo, você já estava saindo porta afora. Eles pediram para avisar que, como você estava demorando muito para acordar, iam te esperar no pavilhão.
– No pavilhão? Mas foram eles que quiseram dormir até mais tarde!
– Demetria, já são quase duas horas da tarde.
Demi estacou. Não podia acreditar que passara tanto tempo dormindo, ainda mais um sono de tão má qualidade que produzira sonho tão desagradável.
– Parece que tantos beijos ontem à noite te deixaram meio atordoada, hein, pirralha. – Disse Haryn claramente se divertindo.
Demetria queria matá-lo. Que direito ele achava ter de discutir sua vida assim?
– Vai se ferrar, Haryn! – Disse saindo de casa e batendo a porta.
– Por que você a provoca tanto?
– É engraçado. 
– Ela te odeia.
– Eu sei. E deve estar me odiando mais ainda agora. – Disse Haryn com um olhar triste.
– Provavelmente. E se eu não te conhecesse diria que é exatamente o que quer.
Haryn olhou-o, mas não respondeu.

Demi saiu da taberna e começou a chorar. Como aquele homem horrível podia existir e estragar tudo? Sentou-se em um tronco e chorou toda a sua raiva. Quando levantou os olhos Artie e Bernie estavam lá.
– Desde quando estão aí?
– Desde que você saiu da taberna. O que aconteceu, Demi? – Perguntou Bernie se sentando ao seu lado. Artie estava parado em sua frente.
Demi percebeu que se fosse contar sobre o que acabara de acontecer, teria que contar sobre a noite anterior e não sabia se queria isso. Mas como Aisni tinha dito, eles eram seus amigos e tinham o direito de saber.
– Ethan me beijou ontem.
– Nós sabemos.
– Como?
– Nós vimos.
– Vocês viram? Mas... ah, tudo bem. Então, Haryn também viu. E vocês sabem como ele é um homem horrível e hoje contou para Josh.
– Mas você acha que tem problema o Josh saber?
– Não, não é isso! Mas ele não tem direito de ficar falando da minha vida por aí, ele é um homem detestável e nojento e eu o odeio, odeio!
– Calma, Demi. Ele gosta de te provocar. Se você não der atenção, ele vai parar, você vai ver.
– Mas eu não consigo!
– Bem, você vai ter que tentar, né? Afinal o Josh gosta dele e Haryn ainda vai estar por aqui por um bom tempo.
– E como você sabe disso? – Perguntou Demi, irritada. – Ele pode morrer amanhã, ou hoje!
– Se é nisso que você quer acreditar, tudo bem.
Demi agora estava irritada com os amigos. Deviam concordar com ela e insultar Haryn junto com ela, mas não. Preferiam tentar fazer com que ela esquecesse e deixasse para lá. Ela se levantou, enxugando os olhos e saiu sem dizer nada. Os dois amigos a seguiram e sabiam que ela estaria de péssimo humor pelo resto do dia.
Depois de andarem por um tempo sem dizer nada, Aisni apareceu e Artie e Bernie disseram que iriam dar uma volta para deixarem as meninas sozinhas. Demi contou a Aisni o que tinha acontecido e, depois de ela concordar veementemente com Demi, ela se sentiu um pouco melhor. Depois conversaram sobre suas aventuras na noite anterior. Aisni contou que Bunn havia pedido para namorar e que ela havia aceitado. Demi ficou muito feliz e contou sobre o que acontecera com Ethan e Aisni disse que tinha certeza de que ele também a pediria hoje.
– Você vai aceitar?
Demi pensou no quanto se sentia bem com ele e a mudança que sentira na noite anterior antes de responder:
– Sim, acho que sim.
As duas amigas continuaram passeando até encontrarem um aglomerado de pessoas reunidas em torno de Bernie. Ele estava contando uma de suas histórias, a de um grande mago que se cansara de magias e fora viver nas montanhas com os grandes pássaros. Demi conhecia a história, mas parou para ouvir, pois a voz de Bernardo contando uma história era algo mágico, mesmo que você já conhecesse a história de cor. Todas as pessoas ao redor olhavam-no com grande admiração e não se ouvia um único ruído. 
Quando ele terminou todos aplaudiram e pediram mais histórias, mas ele disse que já era o suficiente para aquele dia. Demi foi até ele para se desculpar pelo seu comportamento anterior, mas antes que começasse ele disse:
– Não precisa se desculpar.
Ela parou e olhou-o, curiosa. Ele começou a rir e abriu os braços para ela.
– Menina teimosa!
Ela correu para abraçá-lo. – Urso bobo!
Aisni se aproximava com Artie e eles conversavam animadamente. Demi se virou para tentar se desculpar com Artie, mas ele já estava dizendo que não precisava.
– O que acontece com vocês dois? 
– Simples! Nós te conhecemos bem demais.
– Aparentemente mais do que deviam.
– Ah, você não tem ideia.
Todos riram.
A tarde já estava no fim, mas hoje ninguém iria para casa. A noite caiu, as lamparinas começaram a se acender e as estrelas já brilhavam no céu, mas era uma noite sem lua. Ethan e Bunn chegaram e Artie e Bernie foram passear para deixarem as meninas a sós.
Demi não se importava se alguém a visse de mãos dadas com Ethan hoje. Josh já sabia, seus amigos já sabiam e era isso que importava. Como Aisni previra, ele a pediu em namoro e ela disse sim. Naquela noite não ouviram a versão do ritual e nem a história. Nem naquela noite nem em nenhuma outra daquela semana.
Na semana seguinte Josh abriria a taberna, mas ele sempre dispensava Demi e Bernie dos trabalhos. E na hora das histórias ele sempre estava lá. Era sua maior diversão ouvir as versões absurdas do último ritual. Demi desconfiava de que ele mantivesse um registro de todas as versões, depois de ter esquecido a sua preferida.
Na primeira noite da segunda semana, mesmo Demi e Ethan foram ouvir as histórias, pois era na última semana que os melhores cantores se apresentavam. Na segunda noite, o cantor cantou uma canção sobre uma guerra antiga e todos aguardaram com excitação pela história, pois sabiam que seria sobre a Última Renovação. Até aquele momento da quinzentina, não tinha havido histórias sobre isso, só canções, por isso a expectativa era grande. Até mesmo Josh e Haryn pareciam inquietos e trocavam olhares significativos.
Quando o contador subiu ao palco fez-se silêncio absoluto e Bernardo soltou um rugido baixo.
– O que foi, Bernie? – Perguntou Artie.
– Não sei, não fui com a cara dele.
O homem tinha cabelos e olhos negros, mas era pálido como a lua. Vestia roupas azuis simples e Demi não via nada de especial nele, mas os olhos dos ursos eram mais perscrutadores e ela acreditou no amigo, antipatizando imediatamente com a figura do homem.
Quando ele começou a falar, sua voz parecia uma música hipnotizante e ninguém conseguia desviar o olhar ou deixar de ouvir.

Há muitos e muitos anos existia um ser muito sábio e poderoso e ele andava livre pelas montanhas e florestas do nosso mundo. Não servia a ninguém e era amigo de todos e por este motivo lhe doía a alma ver dois de seus povos preferidos em guerra: os homens e os dragões. Então este ser tão sábio decidiu propor um acordo entre ambos, uma aliança. Eles se uniriam pelo sangue e, dessa forma, jamais guerreariam entre si novamente. Com esta aliança de sangue os homens ganhariam mais tempo de vida, seriam mais belos e mais poderosos e teriam acesso ao conhecimento da natureza e do mundo que só os dragões possuíam; já os dragões ganhariam todo o conhecimento adquirido pelos homens através das leituras dos pergaminhos de anos e mais anos, a sabedoria que resultara de tal conhecimento, a capacidade de ter sentimentos, de amar, e de pensar racionalmente. Os dragões não estavam completamente convencidos de que a aliança valia a pena, mas Ulmur, o Grande, convenceu-os dizendo que, acima de tudo, eles teriam paz. Mas o preço para tal aliança era alto. Tanto Ulmur quanto Shaian, o grande rei dos homens, tinham que se sacrificar para que a união fosse possível. Ninguém nunca soube como esse sábio ser convenceu-os a se sujeitarem a isso, mas o sacrifício foi feito e a união entre as raças, estabelecida. Sobre esse ritual inicial, nada posso contar-lhes, mas o ritual tinha que ser repetido, de maneira simbólica, a cada mil anos, quando a lua aparece no céu coroada pelas cinco estrelas da vida. Então, a cada mil anos, um representante humano do sexo feminino e um representante da raça dos dragões, também fêmea, se encontravam na clareira da União, onde o tal ser sábio fazia uma invocação do espírito de Ulmur e de Shaian, com uma gota de sangue de cada representante e palavras em uma língua estranha, só conhecida por ele. Quando os espíritos apareciam, a mulher humana devia fazer uma escolha: carregar a criança em seu ventre ou colocá-la em um ovo de dragão. Se escolhesse a primeira opção, tudo o que teria que fazer era receber o sopro de Ulmur e Shaian. Mas se escolhesse a segunda opção, teria que se sacrificar, assim como Ulmur e Shaian, para que com sua vida garantisse a gestação de seu feto em um seguro ovo de dragão, que eclodiria quando fosse o tempo. Não antes, nem depois. Por este motivo a fêmea do dragão era escolhida entre as últimas a terem chocado um ovo, pois ela tinha que levar ao ritual seu último ovo eclodido, com nenhuma parte faltando. E quando esse era o caminho escolhido pela humana, ela se mataria com um punhal específico, trazido pelo ser sábio, seu sangue seria recolhido no ovo da fêmea dragão, com todos os pedaços juntos, e então Ulmur e Shaian soprariam sobre o ovo. A segunda opção nunca fora escolhida, até a Última Renovação. Tomus já sabia do perigo que sua linhagem corria, embora nunca tenha sido descoberta a fonte de seu conhecimento. Alguns dizem ser pela ligação com os dragões, outros dizem que ele foi alertado pelo ser sábio, mas nunca saberemos. O fato é que quando teve que enviar sua rainha ao ritual, já tinha tudo planejado para salvar ao menos um de sua linhagem. Enviou junto com ela uma criada, muito parecida com a esposa, para que esta retornasse como sua rainha, grávida, após ter escolhido a primeira opção. Tomus sabia que aquele que procurava exterminar sua linhagem tinha conhecimento do ritual e sabia que estariam aguardando sua esposa para matá-la, com seu herdeiro em seu ventre, logo após terem lhe assassinado em seu castelo. A rainha se sacrificou, escolhendo a segunda opção e colocando sua criança a salvo em um ovo de dragão. E assim a criada foi enviada para a morte, como se fosse a rainha. E foi assim que ao menos um membro da linhagem dos homens do sangue do dragão se salvou. Se o ovo já eclodiu, eu não posso lhes dizer, mas posso lhes garantir que ouviram, pela primeira vez, a verdadeira história do ritual entre dragões e homens.

Ninguém aplaudiu. As pessoas nem pareciam respirar. O homem se curvou e saiu do palco. Bernie e Artie não falaram nada, se entreolharam e Demi percebeu que estavam assustados.
– O que foi?
– Demi, precisamos ir para casa, agora! – Disse Artie.
– Por que, o que foi?
– Nada, Demi. – Disse Bernie mais calmo. – Mas como eu disse, não fui com a cara desse sujeito e essa história me irritou, podemos ir para casa, por favor?
– Mas essa foi a melhor versão que já ouvi, até parece com a que Josh se esqueceu. – Disse Demi olhando ao redor procurando por Josh, mas ele não estava lá. – Onde está Josh?
– Ele já foi para casa, podemos ir?
– Sim, mas preciso encontrar Aisni, ela ficará em casa essa noite. 
– Vá com Artie que eu a encontro e a levo para casa – disse Bernie.
Demi estava completamente perdida, mas não discutiu, percebeu que seus amigos estavam agitados e, mesmo ela, sem saber o motivo, estava se sentindo inquieta. Ainda estava de mãos dadas com Ethan, que não estava entendendo nada.
– Posso te acompanhar até a sua casa?
– Sim, acho que sim.
Demi, Artie e Ethan seguiram para a taberna e quando chegaram ouviram vozes lá dentro. Artie entrou para deixar Demi se despedir de Ethan.
– Bom, acho que tenho que ir. Até amanhã, então.
– Até amanhã. – Mas Ethan não parecia querer ir embora. Demi beijou-o na face direita, depois na esquerda e depois nos lábios.
– Te vejo amanhã, boa noite!
– Boa noite, Demi. Até amanhã!
Demi se sentia triste, mas não sabia por que. Talvez fosse só pela agitação dos amigos, mas sentia vontade de chorar. Antes que chegasse até à porta da taberna Bernie apareceu com Aisni e todos entraram juntos. Josh e Haryn estavam conversando baixo e apressadamente e Artie os ouvia quando Demi e os outros entraram. Eles pararam imediatamente.
– Demi, que bom que você chegou. Deve estar cansada.
– Não, eu quero saber o que está acontecendo.
– Não hoje, está tarde e não é nada demais – Disse Haryn e olhou-a significativamente, sem zombaria, sem chamar-lhe de pirralha. E Demi entendeu. Não ouviria nada com Aisni ali.
– Está bem, então. Vamos dormir, Aisni.
Aisni estava um pouco confusa, mas não tinha ideia do que tinha acontecido, então aceitou o chamado e elas subiram as escadas, desejando boa noite a todos.
– O que eles estão discutindo?
– Nada demais, deve ser para decidir como a taberna vai funcionar amanhã.
– Ah. A versão de hoje foi boa? Não ouvi.
– Foi normal. – Demi não sabia o que falar. Achava que a tal versão era o motivo te toda a apreensão e não queria falar sobre isso com Aisni.
– Nossa, estou muito cansada, você não? – Disse Demi.
– Sim, nossa! Muito cansada. – Respondeu Aisni.
Demi a colocou na cama e deitou-se no colchão de palha ao lado da parede. Não achava que conseguiria dormir, mas não conseguiu segurar o sono por muito tempo; no fim das contas devia estar mesmo muito cansada.
No meio da noite acordou com Haryn sacudindo-a.
– Demi, acorde! Acorde!
– O que foi?
– Você tem cinco minutos para pegar algumas coisas, vamos viajar.
– Como assim? Quem? Aonde vamos?
– Sem tempo para perguntas, ande logo ou se arrependerá.
– Não posso deixar Aisni aqui.
Haryn olhou-a por um momento e depois de dizer um palavrão concordou:
– Tudo bem, acorde-a e traga roupas para ela também. E traga roupas de frio e pegue alguma comida.
Demi não teve tempo de perguntar mais nada e pelo tom de Haryn e o fato de ele tê-la chamado de Demi, sabia que não havia tempo para teimosias.
Acordou Aisni e com o mínimo de explicações possíveis, disse que iriam fazer algo inusitado e divertido e que era uma surpresa. Pegou o que pôde, de acordo com as instruções de Haryn, e enquanto descia as escadas, pensava em ir avisar seus amigos no fundo da taberna, mas eles já estavam esperando.
– Vocês também vão?
– Sim. Está pronta?
– Sim, eu acho.
Nesse momento Haryn saiu apressado e disse:
– Vamos indo, Josh nos encontrará depois. Vamos!
Ainda estava escuro e havia muitas estrelas no céu, devia faltar muito tempo para a aurora. Todos pareciam com pressa, então Demi também se apressou, fazendo Aisni a acompanhar.
Depois de uns 20 minutos de caminhada, estavam quase saindo da aldeia, quando Demi olhou para trás e viu uma luz muito brilhante.
– O que é aquilo?
Ninguém respondeu.
– Haryn, o que é aquilo? – Gritou.
– Fogo.
– Precisamos voltar e avisar as pessoas, está se espalhando e vai chegar às casas! – Demi estava desesperada, mas ninguém parecia se importar, além de Aisni, que estava muito apavorada agora.
– Precisamos voltar agora! – Gritou Demi, parando. Haryn voltou-se, olhou em seus olhos e disse:
– Já estão todos mortos, Demi. Não há nada que possamos fazer.